Laura

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Uma Crônica de Drummond

O Amigo que Chega de Longe                

O amigo chega de longe – de há quarenta e oito anos. Está novo em folha, em sua magreza de folha. Tem o rosto marcado pelo tempo? Como se não tivesse. Os cabelos são pretos, a voz mansa e baixa, como antigamente, como sempre. Sobretudo, o modo de ser e o próprio ser não mudaram. É minha mudança que eu toco, diante de sua permanência. Então, divirto-me chamando-o de velho, por outras palavras. Invento, ao meu favor, uma absurda diferença de idades. Ele sorri e desmente sereno. Tem ao seu  lado, a memória – essa memória de espelho, a cuja superfície, as coisas bóiam com o relevo e a cor naturais. E vêm as coisas. O jogo era simples preliminar à entrada em matéria.
Entramos nela, com apetite regulado, sabendo que essa fome não passa nunca, por isso mesmo, não precisamos dar-lhe toda a corda. Para instruir-me do nosso passado comum, principalmente, de meu passado, vou puxando reminiscências por um fio fraco. E isso? E aquilo? E aquele cara – como é mesmo que se chamava aquele cara? Que, certa noite... A resposta vem precisa, sem vaidade de memorialista, e me devolve à situação antiga. Não é diálogo de mortos, de uma a outra cova. É ida ao quarto de guardados, que não se abre todos os dias.
Os guardados estão em ordem, graças a ele, que não tem fama de organizado, enquanto eu, o arquivista profissional, sinto que, por mim, a arrumação jamais se faria. Sem tristeza, os tiramos da arca, miramo-los, notamos este ou aquele pormenor que ficou precioso, considerado de perto, e, depois, voltamos a depositá-los onde dormiam. Sem tristeza, até com a miúda, reflexiva alegria dos proprietários de velhas lembranças.
Assim, conversamos na sala tranqüila. É noite, em algum lugar, desfilam escolas de samba. Mas, o amigo, de passagem pela cidade, não quis ir ver o desfile, desdenhou programas. Escolheu a noite para me, fazer-nos companhia. Pois, temos o direito de usar este pronome no singular: nós. Mas, declará-lo, seria quebrar o mistério dessa unidade. Sou eu que me visito, se ele me procura, discreto, entre longos intervalos que o correio não costuma preencher. Guarda-se para os encontros pessoais, quando o gesto, o olhar, a voz, mais do que os assuntos, fazem diálogo.
Essa constância ao meu dispor essa fixidez de raízes fundas, entretanto, não excluem um feixe de acontecimentos individuais, de que não participei, melhor diria: que me formam poupados. Ele sofreu sozinho, não o assisti. E não me traz a presença de seu combate. Recolheu de tudo o agradecimento à vida, à surpresa do milagre. A mim, só me dá o melhor, como se o melhor fosse o normal, à margem de todo esforço.
Chovendo. As vidraças molhadas dão mais aconchego à sala, protegida do rumor e do vento; chove apenas para os outros, os que não receberam o amigo, recebendo-se a si mesmos, os que vão procurar o espetáculo, satisfação vinda de fora Uma criança se aproxima, examinando o visitante. As crianças estão sempre examinando os mais velhos, avaliando-lhes a humanidade. Este saberá se comunicar, ou, é apenas um adulto a mais, sem sabor de gente? O amigo saca do bolso pequena palha de milho, o canivetinho, o naco de fumo rescendente. Preparação do cigarro: mágica pura aos olhos de menino de cidade grande. Requinte final. O pequenino laço de palha no meio do cilindro, para que ele não se desmanche se o fumante o guarda para mais tarde. Pergunta ao garoto: “Você tem fósforo?” O menino, orgulhoso, de fazer fogo, acende-lhe o cigarro de palha. Ficam amigos, á luz do pequenino círculo esbraseado. Uma luz que vem de há quarenta e oito anos.

Carlos Drummond de Andrade – de “Os Caminhos de João Brandão” (1970)

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