Laura

Laura

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A Beleza das Palavras de Guimarães

A Menina de Lá – João Guimarães Rosa (do Livro "Primeiras Histórias - 1962)


      Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
      Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua..." – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.
      Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – "Nhinhinha, que é que você está fazendo?" – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: - "Eu... to-u... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
      Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão..." Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina grande..." Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - "Deixa... Deixa..." – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.
      Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade." Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: - "Vou visitar eles..." Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: - "Ele te xurugou?" Nunca mais vi Nhinhinha.
      Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.
      Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - "Eu queria o sapo vir aqui" Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - "Está trabalhando um feitiço..." Os outros se pasmaram; silenciaram demais.
      Dias depois, com o mesmo sossego: - "Eu queria uma pamonhinha de goiabada" – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – "Deixa... Deixa..." – não a podiam despersuadir. Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.
      Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
      O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – "Mas, não pode, ué..." – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – "Deixa... Deixa..." – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.
      Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal.
      - "Adivinhou passarinho verde?" – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.
      E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.
      Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – "Menina grande... Menina grande..." – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.
      Agora, precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?
      O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer...
      A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.



O Mais Belo Conto de Guimarães


O conto “A Menina de Lá”, de Guimarães Rosa, faz parte da obra “Primeiras Estórias”, lançado em 1962. É uma história bonita, doce, trágica, sutil e que faz o leitor revelar-se em uma emoção, em um sentimento que somente as palavras precisas, marcantes, simbólicas de Guimarães Rosa podem provocar. Um conto quer pode mesmo levar as lágrimas uma adolescente de treze anos, como presenciei certa vez, durante uma aula para uma turma de sétima série.  Após ler em sala de aula, para uma turma de sétima série. A personagem central desta história é Maria, Nhinhinha, uma pequenina de quatro anos, dotada, ao que todos crêem, por uma capacidade notável de realizar milagres, ou, por conseguir tudo o que sonha, pede, sente, deseja, no entanto, por sua idade, pelo em que vive, pela cultura de sua gente, suas palavras, seus pensamentos, por vezes, tornam-se ocultos, quase ininteligíveis – daí, a linguagem nova, revolucionária e poética de Guimarães se mostra presente Nas falas da personagem.
Nhinhinha tinha um lugar cativo no coração do narrador, que revela um gosto, um carinho especial pela menina, seu jeito doce e meigo, suas fantasias e desejos infantis, suas palavras: “altura de urubuir”, apontando o dedinho cedo para o céu, dizendo que gostaria de, também, ir para lá, falando em parentes mortos que ela desejava visitar: “Eeu? To fazendo saudade...Vou visitar eles.” O narrador, que não voltou a ver Nhinhinha, conta que, por aquele momento, a garota começou a fazer milagres, na verdade, pequenos desejos começaram a se realizar, desejos doces, sinceros, infantis, como ver um sapo, desejo acompanhado pelo surgimento de uma enorme rã verde brejeira, ou, de comer uma pamoinha, ao que chega uma senhora com uma pamonha enorme, recheada com goiabada, para deleite da menininha.
Os milagres de Nhinhinha se tornam segredos de família, mas os pais esperam algo mais da menina, desejos mais concretos, soluções para sua miséria, esperam que ela sonhe com chuvas para tornar a terra fértil, em viver uma vida melhor e menos dramática e desesperançosa, para o qual a menina dizia apenas. Mesmo quando a mãe adoeceu, Nhinhinha se mostrava irredutível em contrariar os desígnios de Deus, mas, na sua ingenuidade, desejou um abraço de sua menina grande e a mãe se curou de repente, como um milagre. E ela repetia a cada anseio de seu pai: “Deixa... deixa – se sorria repousada, chegava a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.”
Mas, ela seguia com seus desejos de criança, e pedia um arco-íris – fato que a tornou a menina de uma felicidade nunca vista, correndo, pulando sorrindo da casa para o quintal. O mesmo arco-íris, o que trazia a chuva para os confins do mundo em que vivia, atrás da Serra do Mirim, em um lugar chamado Temor de Deus, em algum ponto perdido do sertão, era um anúncio, um aviso de Deus.
Este conto, narrado em terceira pessoa, mostra-nos, em dado momento, o autor-personagem, em suas conversas com Nhinhinha, a personagem central da história, uma bela e sensível narrativa, em que o autor, dado ao título, mostra-nos que a menina de lá pertence ao mundo dos anjos, ao reino dos céus e revela, a cada milagre da personagem, a cada pequeno milagre, a ingenuidade, a pureza dos anjos, que marcam o espírito das crianças. Isso se torna claro em diversos aspectos e momentos da narrativa, sempre presentes nas falas do narrador e da personagem Nhinhinha, como lua, estrelinhas, céu, alturas, aves, mortos, saudade, milagres, a devoção religiosa da mãe, e mesmo o lugar distante e isolado chamado Temor de Deus.
Bobagem alguém querer analisar este conto sob os olhares científicos, lógicos e racionais, é a ficção, a revelação de um mundo fantasioso, de uma crença fervorosa, perene e presente no imaginário popular, no coração do sertanejo. A personagem Nhinhinha traça um perfil coletivo do homem do sertão, religioso ao extremo, temente a Deus e às coisas ligadas à sua religiosidade, de uma forma tão direta e intensa, como um homem da Idade Média, com seus temores, seus anseios, suas superstições. Uma forma de se ligar ao mundo da esperança, mesmo em condições tão adversas como as que vive perdido no imenso sertão. Nhinhinha se torna, então, a chave para os problemas de sua família, de sua gente, uma carga impossível de suportar, mesmo para uma menina dotada de condições inexplicáveis, acreditada por fazer milagres, mas presa a um mundo de fantasia, que rege toda a infância, por mais duras que se mostrem as condições em que vivem. Um sem-fim de desejos e necessidades que levam a menina, inconscientemente, a preferir o mundo da fantasia, ou o reino dos céus, onde possa viver com seus milagres, sem despertar interesses terrenos, reais e sufocantes para sua idade e seu tempo muito breve de vida. Pois, para Nhinhinha, a morte não é o fim, não é a tragédia, é o passaporte para um mundo de libertação a alegria, realizando-se o desejo de a menina ser do outro mundo, a menina de lá... do sertão, da esperança, sonhos, da fantasia, do reino de Deus .

Prof. Marcelo Monteiro







Nenhum comentário:

Postar um comentário