Laura

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Poesia nas Histórias de Rubem Braga

A Poética de Rubem Braga

Rubem Braga (1913-1990) foi cronista, poeta, repórter, tradutor e crítico de artes plásticas,  escreveu, durante seu caminhar literário, crônicas memoráveis aos jornais e revistas, sobretudo do Rio de Janeiro, mas deixou suas letras em jornais de Belo Horizonte, São Paulo, recife, Porto Alegre e se tornou o único escritor brasileiro a conquistar seu espaço na Literatura criando, construindo, essencialmente, crônicas. Abordando temas cotidianos, pessoais, pensamentos e impressões diárias, sobre temas diversos como infância, juventude, amadurecimento, amores, o autor nos revela uma ode à vida, uma vida simples, bela, carregada de emoções e sentimentos, mesmo que, por vezes, castigada pelo sofrimento de um ou outro personagem, além de um lugar especial para a natureza, urbana e rural, que surge em seus escritos.
Sua prosa poética, pois há tanta beleza em suas palavras que seus textos nos remetem a uma idéia poética, de saudação ao que há de mais sutil, belo, verdadeiro e poético, nas palavras que constroem sues textos.
Rubem Braga conhecia as areias e os ventos, os circuitos que elevam os fatos diários a se tornarem histórias bonitas para serem contadas, histórias quem guardam em si mesmas segredos de uma poesia que o autor revela em forma de crônicas. Objetos comuns narrados por um lirismo inconfundível, intenso, leve, quase musical, dentro do qual une os acontecimentos às paisagens, aos estados de alma, às pessoas, à natureza, aos sentimentos, enfim, tudo contado de forma simples, corriqueira, sob uma temática simples e, por isso mesmo, bela de se ler. Suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples. Uma transposição dos limites existentes entre crônica, conto, romance, poesia traz uma densidade, mantendo a aparência de uma conversa entre o autor e o leitor, em uma forma de tornar clara, ao mesmo tempo em que esconde a complexidade de personagens construídos, coordenados com o ritmo, o tempo, o espaço e a flexibilidade das palavras – sutis, belas e verdadeiras.    Prof. Marcelo Monteiro

Bibliografia de Rubem Braga:
- O Conde e o Passarinho, 1936 
- O Morro do Isolamento, 1944
- Com a FEB na Itália, 1945
- Um Pé de Milho, 1948
- O Homem Rouco, 1949
- 50 Crônicas Escolhidas, 1951
- Três Primitivos, 1954
- A Borboleta Amarela, 1955
- A Cidade e a Roça, 1957
- 100 Crônicas Escolhidas, 1958
- Ai de ti, Copacabana, 1960
- O Conde e o Passarinho e O Morro do Isolamento, 1961
- Crônicas de Guerra - Com a FEB na Itália, 1964
- A Cidade e a Roça e Três Primitivos, 1964
- A Traição das Elegantes, 1967
- As Boas Coisas da Vida, 1988
- O Verão e as Mulheres, 1990
- 200 Crônicas Escolhidas
- Casa dos Braga: Memória de Infância (destinado ao público juvenil)
- 1939 - Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front), 2002
- Histórias do Homem Rouco
- Os melhores contos de Rubem Braga (seleção Davi Arrigucci)
- O Menino e o Tuim
- Recado de Primavera
- Um Cartão de Paris
- Pequena Antologia do Braga
ROMANCES:
- Casa do Braga
ADAPTAÇÕES:
- O Livro de Ouro dos Contos Russos

- Os Melhores Poemas de Casimiro de Abreu (Seleção e Prefácio)

- Coleção Reencontro Audiolivro - Cirano de Bergerac - Edmond Rostand

- Coleção Reencontro: As Aventuras Prodigiosas de Tartarin de Tarascon Alphonse Daudet

- Coleção Reencontro: Os Lusíadas - Luis de Camões (com Edson Braga)

TRADUÇÃO:
Antoine de Saint-Exupéry - Terra dos Homens.
O Sino de Ouro

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica perto do rio de Ouro e da serra de Santa Luzia, ao sul da Serra Azul - mas também pode ser Uruaçu, junto do rio das almas e da serra do Passa Três (minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos, esqueço os mandamentos e as cartas e até a amada que amei com paixão) -, mas me contaram que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres e os homens pobres, e muitos são parados e doentes indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem - coisa bela e espantosa - um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grã-senhor - nem Chartres, nem colônia, nem S. Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente. É apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus - gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações, e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas as explosões - eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria, ouve o som alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada homem, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.
Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição, e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrupção - dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
E se Deus não existe, não faz mal. O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: "eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro".
O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesmo a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista, ele só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança tem dentro seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.


Rubem Braga, do livro “A Borboleta Amarela” (1951)


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